Hoje foi dia de ir à feira.
E não, não foi à feira popular.
Fomos à praça.
Para quem não sabe, há feiras e praças. Na realidade são a mesma coisa, mas umas são à semana e outras aos fins de semana.
Nas feiras/praças vende-se de tudo um pouco, roupa de criança e adulto, sapatos, miudezas, animais, plantas, flores, fruta e legumes, pão e bolos, peixe e carne…
Quem me conhece sabe que venho de uma família materna de feirantes (literalmente todos do lado da mãe vendem nas feiras).
Os meus avós vendiam miudezas (sabonetes, pentes, papel higiénico e, mais recentemente, até preservativos!). Começaram nas feiras ainda novos, e iam de cavalo. Depois o meu avô cegou completamente e começaram a ir à boleia. Andaram nesta vida até bem depois dos 70 e não havia mais nada que lhes desse tanto prazer como vender as suas coisinhas e falar com as pessoas. Sempre foram muito acarinhados e todos os conheciam.
A minha mãe concluiu a quarta classe e adorava estudar, mas não podia porque tinha que começar a trabalhar com eles. Os meus pais acabaram for “ficar com o negócio” e venderam roupa de criança e interiores durante quase 30 anos.
Vida de feirante não é fácil.
E não pensem que quem vende nas feiras faz isso porque, “coitados, não deu para mais.“
Ser feirante é ser trabalhador. Muito trabalhador.
Ser feirante e não saber quanto se vai “apurar” ao fim do dia, quanto mais ao fim do mês.
Ser feirante é saber o preço de tudo o que tens na barraca, mesmo sem a maior parte da mercadoria estar marcada.
Ser feirante é saber exatamente quais são as “faltas”, em tamanho e cor, para ires ao fornecedor comprar.
Ser feirante é montar e desmontar a tenda todos os dias, quer esteja sol ou chuva, nas 4 estações do ano.
Ser feirante é ter de montar o toldo de inverno, que é pesado que se farta, porque viste a meteorologia ontem e achas que pode chover.
Se chover, ser feirante é ir com a “calha” e esvaziar as poças de água que se formam no toldo, com muito cuidado para não molhares ninguem, nem a tenda da frente.
Ser feirante é saber a que dia do mês é cada feira, e saberes se andam para a frente ou para trás, se calharem ao domingo.
Ser feirante é ir montar os ferros da barraca no sábado à tarde, para que no domingo possam todos dormir mais 1h.
Ser feirante é repetires um puzzle diário de caixotes para que eles caibam na carrinha.
Ser feirante é ter roupa estragada, porque caiu ao chão numa poça de lama, enquanto estava pendurada numa cruzeta, no gancho do toldo.
Ser feirante é teres a preocupação de levar “trocos” para a feira.
Ser feirante é fazer as contas simples de cabeça, ou tirar a caneta de trás da orelha e fazê-la atrás de uma caixa de cuecas, quando o cliente leva muitas peças.
Ser feirante é acordares os teus filhos às 5h da manhã ao sábado e ao domingo, e carinhosamente deixá-los dormir debaixo da barraca, ou deitados nos bancos da carrinha, se conseguires deixar o carro atrás da tenda.
Ser feirante com filhos pequenos é improvisar uma casa de banho numa caixa de meias que acabaste de esvaziar à pressa (porque não podes deixar a tenda para ir à casa de banho ou não há casa de banho perto), enquanto os escondes por detrás do expositor das toalhas de mesa.
Ser filha de feirante é acordar às 5h da manhã ao fim de semana, seres vestida pela tua mãe ainda com os olhos fechados, e seres levada para a carrinha, ao colo, meia a dormir.
Ser filha de feirante é sentares-te em cima de caixotes na parte de trás da carrinha, porque à frente só há 3 lugares, e tu és a mais nova.
Ser filha de feirante é pensares nos teus colegas que passam o fim de semana em casa, enquanto tu vais carregar caixotes para a praça.
Ser filha de feirante é fazer cálculo mental rápida e corretamente pois não podes dar parte fraca à frente dos clientes.
Ser filha de feirante é os clientes chamarem a tua mãe, que está a atender outras pessoas, para confirmar os preços, porque afinal és só uma miúda e não percebes nada.
Ser filha de feirante é a tua mãe confirmar os preços que disseste e orgulhosamente dizer “ela sabe bem o que está a fazer”.
Ser filha de feirante é pensares que quando fores grande queres trabalhar por conta de outrem para não viveres na incerteza do ordenado ao fim do mês.
Ser filha de feirante é ter dores de costas aos 14 anos e dizerem-te “é do crescimento”, quando já carregas caixotes com metade do teu peso aos 10 anos de idade.
Ser filha de feirante é brincar com barro e terra, ao lado da barraca dos teus pais, nos dias em que a feira está fraca.
Nos dias bons de feira, ser filha de feirante é, atender os clientes como se o negócio fosse teu, com um sorriso nos lábios, como aprendeste com a tua mãe.
É, a meio da manhã, beber café de um termo, na chávena de plástico que também é a tampa.
Ser filha de feirante é comeres bifanas ao pequeno almoço e sandes de bacalhau panado ao almoço, que foste buscar à roulotte dos comes e bebes.
Ser filha de feirante é, nos dias de semana em que os teus pais vão para a feira, a tua irmã de 10 anos levar-te à escola porque tens só 5 anos, e depois seguir para a teleescola.
Ser filha de feirante, é aos 7 anos, acordares sozinha, vestires-te, comer e ir para a escola a pé.
Ser filha de feirante é parar em casa de uma amiga para a “apanhar” para ir para a escola e esperares enquanto a mãe dela está a vesti-la, pentea-la e a preparar-lhe o pequeno-almoço.
Ser filha de feirante é às vezes acordar tarde e sujar o fundo da chávena para fazer de conta que bebeste o café com leite, para os teus pais não ralharem contigo porque adormeceste.
Ser filha de feirante é lavar a louça e fazer as camas assim que se chega a casa, nos dias em que os pais chegam mais tarde.
Ser filha de feirante é ser apanhada pela mãe, porque foi a tua avó que te lavou a louça e meteu um paninho por cima da louça a escorrer.
Ser filha de feirantes é um privilégio.
É ter os pais sempre connosco aos fins-de-semana.
É ser a primeira a conhecer as novas tendências e a escolher a roupa da nova coleção assim que chegas a casa depois de irem à “revenda”.
É aprenderes a ser responsável e desenrascada.
É falares com pessoas que nunca viste, mas que tratas com amabilidade porque “nenhum cliente pode sair sem comprar nada”.
É comer pastéis com o café do termo.
É ires a uma feira, 20 anos depois, com a tua filha, e seres reconhecida com tanto carinho, como se fossem todos a tua família.
É dares valor aos pais incríveis que tens porque apesar do temporal la fora, saem de casa, sem saber se vão ter mais prejuízo que lucro.
À minha família e a todos os feirantes, parabéns pela dedicação que têm a esta arte.